segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mercado e Teatro












Existe algo mais próximo da encenação teatral que a colocação em pratica de um projeto, seja ele voltado à geração de um produto final ou à execução de um objetivo pessoal qualquer?

Porque é ela mesma um projeto, a preparação e apresentação de uma peça teatral reúne em si todos os elementos que faz com que uma idéia seja elaborada, sua implantação planejada, os recursos para pô-la em pratica reunidos e sua execução efetuada.

A comparação entre a iniciativa de um empreendimento na forma de um projeto e a prática teatral, que não é por certo original veio-me quando consultava anotações de curso sobre teatro russo realizado na Universidade de São Paulo.

Ao folheá-las dei-me conta do quanto o ato de levar um produto ou serviço ao mercado encerra do espetaculoso que anima as feiras livres e os shows de rua. Basta atentar para a natureza dos apelos mercadológicos do marketing no sentido de fazer aparentar o consumo a uma experiência marcante para a vida toda e equiparável em importância às grandes questões que afetam a humanidade, como a preservação do planeta ou a sobrevivência de populações inteiras na África.

Diga-se que nem sempre o sistema de produção e trocas foi assim. Transposto o longo período de intercâmbio comunitário, três estágios tiveram de sucedere-se a fim de que o símile teatral pudesse fixar-se como paradigma de modelo social.

Entre nós, o primeiro deles foi o de prevalência das comódites agrominerais, em que produtos indiferenciáveis de uma mesma categoria eram comercializados com base exclusiva em preço. No padrão de troca correspondente a esse estágio o comprador e o vendedor não interagem diretamente, tendo a ação orientada pela cotação de preços em mercado.

Essa fase alcançou o auge no Brasil nos anos 50, quando a participação do setor agrícola no valor da produção nacional (PIB) chegou a corresponder 70% do produto nacional (PIB), vindo a declinar depois enquanto o País industrializava-se.

Um segundo momento rumo à figuração de papéis sociais amplamente interatuantes nas relações de mercado foi aberto com a moderna produção industrial ainda nos albores do século XX, quando o modelo fabril imperante ensejou impulso irrefreável à multiplicação de mercadorias destinadas ao pronto consumo, as quais, para serem comercializadas, dependiam da diferenciação e de vantagens de custos oferecidas aos consumidores.

A contínua especialização técnica própria do modelo, que Schumpeter chamou de “destruição criadora” ao mesmo tempo que empregava mais trabalhadores promovia também maiores assimetrias sociais. A mão de obra ocupada na industria cresceu entre 1950 e 1980 ao redor de 70%, sendo a forca motriz por detrás do fenômeno o vertiginoso crescimento das maiores cidades brasileiras.

Ainda uma terceira etapa no percurso a uma sociedade de atores sociais no palco do mercado teve amadurecimento nas circunstâncias recentes de uma economia plenamente urbanizada em que uma gama variada de ocupações promoveu uma diversificação social bastante variegada.

Nesta os serviços ganham autonomia em relação às mercadorias, a ponto de muitas empresas tomarem-no como foco principal dos negócios, como o fez a IBM ao deslocar-se da produção de “mainframes” para o desenvolvimento de sistemas.

A mudança de paradigma operou-se não sem fricções. Ainda agora é possível ouvir de representantes da industria o alerta de que sem um forte componente fabril o sistema econômico estará fadado a sucumbir.

Nada mais falso, desde que estatísticas do processo de desenvolvimento experimentado por nações do mundo todo demonstram forte associação entre maior peso do setor de serviços e maior bem estar das populações.

Também sob esse prisma há indicações expressivas de que o deslocamento do Brasil no “ranking” de nações mais desenvolvidas se faz acompanhar de peso mais significativo do setor de serviços na economia. Ainda de acordo com dados do IPEA, de 1950 e 2008 o setor de serviços passou a responder por mais de 70 % da ocupação no País.

A extrema diversificação social que emerge desse momento ignora até mesmo as restrições à diferenciação da produção industrial em larga escala, como fêz a Dell Computers quando inovou personalizando a montagem massiva de computadores com sua marca.

A digressão acima foi necessária para melhor tematizar o que é propósito deste texto: a semelhança entre o modo de realização da mercadoria na etapa atual da sociedade de serviços e o teatro.

Só quando os serviços apresentam-se como o elemento diferenciador por excelência do produto e fator de arranjo do “hardware” gerado nas linhas de produção fabris, com vistas ao bem-estar de amplas parcelas de consumidores, é que também a experiência estabelece-se como aspecto central das trocas, facultando fruir da emoção verdadeiramente única do ato de consumir.

Na fenomenologia da experiência interferem 4 dimensões que a fazem aproximar-se do mundo teatral. Essas dimensões são aquelas que conferem à experimentação características de entretenimento, educação, escapismo e de proveito estético. Da mesma forma que sucede no deleite proporcionado pela milenar arte do teatro.

A forma teatral por excelência é o drama , que na acepção conferida pelos gregos à palavra “drão” correspondia à idéia de fazer ou atuar, no sentido de ensejar algo a que de antemão não era dado acesso.

Mais tarde esse “fazer” passou a subtender um conjunto de esforços humanos coordenados com a finalidade de levar ao publico uma representação da realidade que produzisse, em atos (elementos de representação), o mesmo efeito de significados quaisquer que fossem as circunstâncias e o momento daquilo que era representado.

Como na empresa contemporânea, que esforça-se por emprestar aos seus produtos “uma cara”, todos os envolvidos com a lide teatral empenham-se no sentido de proporcionar aos espectadores – ou a aqueles que sustentam a expectativa de virem a ser convencidos pela peça – uma representação convincente da realidade, cujo efeito perceptivo que produz foi definido por Aristóteles como verossimilhança ou a sugestão do que é real.

Contam nesse efeito, em primeiro lugar, a escolha dos aspectos da realidade que contribuam com a melhor compreensão dos fatos narrados; em seguida a ordem em que são apresentados os episódio e, por fim, o ritmo mesmo que se imprime à apresentação dos episódios selecionados.

No espetáculo da celebração em mercado do produto não se passa diferente. Depois de definido o que basta para fazer dele algo desejável (no caso do ipad, um computador para levar-se ao banheiro e à cama) deve-se introduzi-lo de modo a que não produza estranhamento (a Apple optou por lançar o ipad depois do iphone, ainda que o projeto do primeiro fosse anterior ao deste último); por fim é preciso que o andamento das ações de marketing sigam uma escalada de envolvimento do consumidor que faça-o sentir-se alguém fora de seu tempo na hipótese de não aderir ao produto.

Voltando ao teatro, os dois principais elementos que articulam a construção da peça teatral, dos argumentos ao ritmo, são o texto e a atuação. Enquanto que por intermédio do texto são estabelecidos os processos internos necessários ao desenvolvimento da peça por meio da atuação são coesionados os elementos a fim de que o enredo mantenha-se o mesmo e seja reiterada a resposta emocional da platéia.

Nos projetos conduzidos por uma pessoa ou empresa, o texto permite que sejam estabelecidas as regras processuais pelas quais se produz determinado efeito, trazido ao palco do mercado por força do fazer produtivo da atuação em equipe.

O texto está voltado para dentro da companhia de teatro ou da empresa; a atuação para fora, visando o público em 3 diferentes formatos: o da improvisação, da plataforma, da montagem e do teatro de rua.

O teatro de improviso é o lugar da abertura para o imprevisível. Sua dinâmica não é programada e decorre da criatividade que brota inesperada dos métodos sistemáticos fixados pelo ensaio e pela representação continuada. Envolve as sempre renovadas formas de enxergar-se temas conhecidos. Como o apelo que fazem as empresas em favor da imaginação e de que é exemplo o slogan “eco-imagination” adotado pela GE.

O teatro de plataforma corresponde ao teatro clássico em que ao texto formal cumpre o papel de estabilizar a atuação dos atores corrigindo imperfeições ensaio após ensaio. Este é o teatro em que o improviso dá lugar à preparação e que não raro o arejamento produzido pela criatividade e a experimentação é substituído por formulações consagradas. Aqui, como no mercado, há sempre o risco de que a ausência de impactos renovados junto ao público acabe por produzir desinteresse.

Na forma teatral da montagem, por sua vez, a técnica sobrepuja inteiramente o improviso através da filtragem pelo pessoal técnico de tudo que chega ao público. É o formato do cinema e da televisão em que a captura de imagens em diferentes momentos do tempo, devidamente editadas e retocadas, permite amplas chances de aceitação pelo público.

Esta modalidade requer análise, decisão e recorrência, como as exigidas aos programas de qualidade total no âmbito das empresas, já que nada pode dar errado sob pena de perda de audiência. Também nesta forma de espetáculo a esterilização do sentido de experiência e a previsibilidade esvaziada de conteúdo emocional pode ensejar a busca por novas opções.

Diferentemente das outras modalidades teatrais, o teatro de rua situa-se no campo da autenticidade. Seu potencial reside na capacidade de atrair pelo que é capaz de oferecer de emoção para só aí pedir dinheiro. Reflete a vida cotidiana, tendo no artista de rua o mais representativo agente e na carnavalização a mais fiel expressão.

Difícil pensar um produto de sucesso hoje que deixe de estar involucrado em espetáculo. Não um show qualquer, mas aquele que diz respeito à própria vida de quem se destina o produto, falando à sua fantasia e às suas aspirações mais intimas.

Qualquer que seja, entretanto, a modalidade de teatro oferecido ao publico será sempre a companhia é o espaço onde se dá o intercâmbio de talentos que cooperaram para tornar fato o espetáculo. Os principais operadores que colaboram para transformar o texto em experiência viva são o produtor, o diretor e o ator.

O produtor é o estrategista meticuloso sem o qual todos os esforços podem vir a perdem-se numa bilheteria vazia. É quem financia o projeto e pensa as melhores condições para sua realização, antevendo a fonte de financiamentos e o retorno esperado para o empreendimento.

Ao diretor compete operar as condições em que se realiza aquilo estrategicamente arranjado, sendo de sua responsabilidade conduzir tudo que ocorre em cena. Deve possuir capacidade organizadora e inventividade para colaborar, orientar e motivar a equipe, sempre na perspectiva estratégica traçada pelo produtor.

Integram a equipe do projeto dramaturgos, que auxiliam o diretor na interpretação do drama e roteiristas que estabelecem por meio do estabelecimento de “scripts” os processos a serem seguidos para a consubstanciação do espetáculo.

As funções do produtor e as do diretor não se confundem. O primeiro figura como “sponsor” do projeto teatral e como, na empresa, responde perante o corpo de acionistas pelo fracasso ou sucesso do empreendimento. Ao segundo cabe o desenvolvimento dos produtos que definem o projeto e por meio dos quais será avaliado o sucesso ou fracasso do empreendimento.

Deve-se a Meyerhold, teatrólogo e diretor russo o feito de haver formulado durante a primeira década do século XX, no teatro de arte de Moscou, uma nova dramaturgia e que persiste até hoje.

Essa dramaturgia encaixava-se à sociedade do espetáculo que se estruturava no ocidente em torno do setor de serviços que se fortalecia crescentemente nos primeiros estágios de diferenciação da produção em larga escala no contexto de uma urbanização mais intensa.

Para ele o teatro seria antes a “a casa da emoção autêntica”, de onde ninguém sairia sem uma lágrima ou sorriso no rosto, concepção que iria desembocar no movimento de vanguarda que depois de 1917 alastrou-se pelo mundo inteiro e que marcou em definitivo a forma de pensar a relação público e espetáculo.

Com Meyerhold o teatro de rua chega às salas de espetáculo, desfazendo-se o preconceito que via no popular um tipo de manifestação menor assentada em repertório de expressões caricaturais.

O gosto popular passa então a desfrutar do status de arte elevada e os valores que o fundamentam a servir de esteio a um novo tipo de sentimentalidade menos dependente de aporte das elites cultas para sua tematizações, senão que lhe bastava ouvir as próprias ruas para a coleta de um repertório de oferta inesgotável.

No mundo da produção fenômeno parecido viria acontecer uma década depois com as empresas abrindo-se a um maior ecletismo do mercado e ao esquadrinhamento das preferências e do gosto popular como forma de promover o sucesso em vendas.

Meyerhold bebeu da fonte do escritor francês Rabelais para quem a comicidade era a expressão mais autêntica da vida. Sendo a arte incapaz de esgotá-la, apenas a inversão da realidade sobre a qual se funda a vida seria capaz de proporcionar plenitude à existência.

Na contramão do pensamento da época – que considerava a estilização um rebaixamento das experiências pessoais e coletivas – entendia a exacerbação das contradições aparentes uma forma mais efetiva de representação da vida.

As teses de Meyerhold podem ser consideradas precursoras do entendimento que via no domínio das ruas sobre os salões e na experiência do contato direto (até o mediado pelas redes sociais de hoje) entre produtores e consumidores um modo mais efetivo de interação assentada não mais em atributos físicos de produtos mas em algo bem mais elusivo, que é a emoção.

Estágio em que criatividade, vencendo as limitações impostas pelo do “know-how” ou daquilo que se chama estado da arte do fazer técnico em cada período, transforma-se em insumo de primeira importância para o desenvolvimento da sociedade e da sua base econômica.

Em São Paulo, Pequim ou Mumbay um novo horizonte abriu-se à prosperidade. Reinventarmo-nos todos como atores de rua, descobrindo o que um novo público precisa e deseja, conservando-lhe a atenção continuamente presa, eis a lição que o mundo do teatro tem hoje a dar ao mundo dos negócios.


























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